Meados de junho de1966, um garoto de apenas oito anos se iniciava em seus estudos, já no segundo ano da escola primária se aventurava no mundo da fotografia.
Quando vi pela primeira vez uma Asahi Pentax !
A paixão foi instantânea. Jorge um homem oriental ( japonês ) de uns trinta anos talvez menos, havia chegado ao Brasil e para minha alegria era meu vizinho. Falava muito pouco o português, quase nada, mas o suficiente para perguntar -com um sotaque muito engraçado- como se chama Isso?, e aquilo? Apontando o dedo às coisas que via pelo caminho e que tinha curiosidade em saber dos nomes durante caminhadas que fazíamos pelo bairro de Veleiros ,zona sul da cidade (SP-Capital). Fotografar com uma maquina profissional tendo como instrutor um oriental que não falava o português: fotometrar ou aprender a fotometria era como atirar no escuro principalmente, por que os negativos ainda seriam revelados para se ver os resultados obtidos nos disparos. Alguns dias depois Jorge me mostrava às fotos, gesticulando queria me dizer algo; algo que eu apenas entendia como menos ou mais, pelos gestos que fazia.
Assim se passavam os dias. O pano de fundo dessa época era uma ditadura implacavel que mais tarde iria interferir, e muito na vida de cada cidadão brasileiro. Fácil mesmo, era fotografar com a máquina que meu pai havia comprado. Muito simples foco fixo sem segredos, era só olhar e apertar o botão. Mas havia muito mais a ser mostrado e isto falava muito mais alto dentro de mim. As fotos com aquela máquina comum não me traziam o resultado que eu esperava - alias, eu nem sabia o que queria delas - apenas achava que ficavam sem graça, vazias - e tambem eram poucas as fotos que eu poderia fazer - meu pai deixava sempre umas três ou quatro fotos de cada filme que comprava pra eu fazer, mas não era todo mês que podia comprar filme. Já o Jorge, tinha fartura de filmes e parecia querer aprender logo o português.
Eu me saia muito bem com ele e não queria perder nem um passeio . Sempre companheiro nas andanças diárias, era eu quem segurava a maquina me sentindo assim, importante e sempre recompensado com alguns clicks e com direito a ficar com as fotos. Assim ia aprendendo a exigir da maquina o que realmente queria ver depois de cada click, mesmo sem entender claramente as explicações que Jorge tentava me dar, ia evoluindo. Certa vez fui com meu pai a uma loja de revelações no centro de São Paulo e, o homem que nos tendeu tinha uma igualzinha a de Jorge nas mãos. Não tive receios e logo perguntei à ele pra que serviam aqueles dois disquinhos cheios de números no topo da máquina. Ele prontamente me fez entender que: um deles controlava o tempo de exposição, enquanto o outro controlava quanto de luz ia receber o filme. Pronto! Naquele momento eu entendi os sinais de menos e mais que Jorge me fazia apontando o marcador do fotometro . Nas próximas fotos que fiz nas caminhadas junto com ele eu já me arriscava mexendo nos anéis de controle da maquina para surpresa dele e minha satisfação. Ver fotos diferentes quando às recebia e ovi-lo dizer com um sorriso no rosto; bom, bom, isso bom, era gratificante pra mim.
Aquele ano de 1966 foi realmente um dos mais difíceis em todos os sentidos. No segundo ano da escola primaria, ja estávamos no terceiro endereço no mesmo ano, e o ano letivo? Bem, este era o mesmo. Mais tarde; ja mais adulto iria entender por quê tantas mudanças de endereço. Pareciamos ciganos, quando me acostumava com o lugar onde estavamos morando; ja iamos mudar de casa outra vez. Em um unico bairro moramos em dezesseis endereços diferentes. Por muito tempo fiquei pensando que as mudanças seriam por causa de uma bofetada que levei de um Força Publica na escola em que eu estudava - Placido de Castro, Veleiros- alem de ter a maquina de meu pai pisoteada pelo troglodita enorme e covarde, por ter tirado uma fotografia da fila do mingau de aveia, que alias era muito ruim , ralo e sem açucar. Mas este é um outro capitulo.
Mas nem tudo foi ruim.
Minha professora -a terceira das tres que tive no segundo ano da escola- nos estimulava a escrever o cabeçalho todos os dias: nome da escola, dia da semana, nome do prefeito, governador e presidente da republica. As redações que escreviamos eram inspiradas em gravuras (recorte de calendário com paisagens sempre bucólicas ) e este era sempre um momento singular de nosso aprendizado naquela época. As gravuras eram sempre muito semelhantes e sempre impostas e mesmo assim eu era o que escrevia mais, buscava extrair das gravuras o maximo de minha imaginação. E assim seguia em frente.
Lembro-me de certa vez ter pedido a minha professora que colocasse algo atual ou mais real para que escrevêssemos as benditas redações sobre coisas que viviamos por exemplo, percebi então, que o desejo era compartilhado unanimemente por meus coleguinhas de classe. Em resposta a professora sugeriu que trouxéssemos fotografias de familia e escrevêssemos sobre elas.
Seria a primeira vez que alguém de fora da família veria uma fotografia que eu havia feito, alem de Jorge é claro e do editor do jornal onde meu pai trabalhava como mecânico de máquinas impressoras: este ultimo pagou ao meu pai pela foto, que mudou literal e radicalmente minha vida -foto que jamais foi publicada e, que deu um problema danado na época, tanto para meu pai como também ao homem do jornal de pagou por ela - esta fotografia, que me permitiu ter a primeira cama decente para dormir, comparada a que dormia até então -três cadeiras juntadas forrada com as roupas do dia ainda por serem lavadas, substituindo o colchão- era um luxo so, um pequeno colchão de molas que parecia estar nas nuvens ao me deitar, de taão macio que era.
“Domingo”, foi o nome que dei a redação relacionada a foto.
Na foto a imagem ilustrava realmente o que fazíamos de melhor aos domingos: a pescaria na represa de Guarapiranga e, de volta pra casa, saborear os pequenos acaras e tilápias que pegávamos com varinhas de bambus, feitas artesanalmente por meu pai.
O que acontecia ao fundo da imagem da fotografia parecia passar despercebido, não fosse por meus olhos atentos e curiosos, que testemunharam aquele terrível episódio, conceito dos anos difíceis, vividos por muitos brasileiros naqueles tempos, pratica das arbitrariedades que o governo ditador exercia como muito rigor e requinte de crueldade, deixando assim sua marca registrada e inconfundível com qualquer outro crime que viesse a ocorrer naquele tempo. Corpos amarrados com arame farpado, -na verdade três deles- e todos muito pálidos, seminus, com muitos buracos pelo corpo, sendo observados por aqueles homens muito bem vestidos de pistola na cintura, enquanto eram recolhidos pelo carro de cadáveres da policia ( o rabecão) O chamado “Esquadrão da Morte” capturava, prendia, julgava executava sumariamente os seus inimigos. Todo policial ou simples guarda civis se sentiam donos das pessoas com quem se avizinhavam ou conheciam; eram verdadeiras autoridades.
Rapidamente juntei-me aso meus à beira da erpresa e contei logo ao meu pai o que se passava ali e antes mesmo que ele se desse conta do assunto ja vinham em nossa direção um daqueles homens de paleto.
Minha vontade era de ir outra vez e de perto fazer uma fotografia -fruto de uma curiosidade muito própria que me acompanha até hoje- mas o receio misto de medo me conteve. O home esbravejava com meu pai e os amigos que junto estavamos dizendo repetidamente " Documentos, documentos vamos" . Depois de ver as carteiras profissionais de cada um dos adultos nos mandou sair de la com urgencia, dizendo " A represa esta fechada" e se retirou apressadamentenão depois de resmungar com meu pai e o tio Cleber sobre o trabalho deles no jornal . Travesso esperei que o homem chegasse junto ao seu grupo e fiz a foto de longe mesmo. Em primeiro plano meu pai abraçando minha irmã, que chorava por não querer ir embora naquele momento, ao lado, Dito -catador de papelão- vizinho e amigo de meu pai, Cleber que ajeitava a varinha de pescar e meu irmão caçula, Junior. Fim de pescaria,. Hoje compreendo o desconto que deu a meu pai ao identificá-lo, pois o jornal onde ele trabalhava -e mais tarde eu também- não era de esquerda ou pelo menos não assumia editorialmente que era, sendo assim...
Ao deixarmos aquele lugar, ainda pude ver ao olhar para trás a aproximação do rabecão. Nunca mais esqueci aquela manhã de domingo, que não tivemos os deliciosos petiscos de peixe ao final da tarde, meu único consolo era saber que dentro da maquina eu levava a prova de tudo aquilo que em minha mente, jamais se apagaria e que me faria buscar todo o entendimento a respeito de tudo que vivenciava naquela e em outras épocas que se sucederam
Era somente o começo de uma época que iríamos viver e aquilo ainda não era nada comparado ao que veria mais tarde; nos próximos anos que viriam.
Ingenuidade: uma imagem como aquela servir de tema de redação, como um dia de domingo com a família, diante de fatos que não poderiam servir de referencia à realidade de sociedade alguma, que neste ponto ínfimo, fingir não ver significava se defender, se proteger e seguir em frente cada um com suas dificuldades.Ter olhos de vidro era sinônimo de tranqüilidade e ficar longe de problemas com a policia principalmente. Mas para uma classe de garotos do segundo ano primário era uma novidade que passou de mão em mão -segredo entre os coleguinhas de classe que queriam ouvir aquela historia macabra- disfarsadamente, sem se aterem ao que realmente se passou ao fundo da imagem, nem mesmo a professora se deu conta, ou ao menos questionara o que de fato eu havia guardado na fotografia e também em minha mente. E de fato a imagem em si não revelava a violência que havia de ser esplanada em palavras já que a composição de uma lente em 35 mm não revelava o segundo plano com nitidez naquela distancia.
Finalmente consegui completar o segundo ano primário e, já fotografava bem melhor, recebi de presente, por ter alcançado o primeiro lugar na classe, um livro de minha professora. O titulo do livro: A trilha da caverna esquecida, com dedicatória e tudo mais. ( Chiesa, Ênio. A Trilha da caverna esquecida. São Paulo: Do Brasil, s. D. 139 p.) Quanto a minha paixão; a Asahi Pentax do tio Jorge, bem: ela se foi junto com ele quando retornou a seu país me deixando uma enorme saudades e ótimas lembranças que trago até hoje em minha bagagem. Soube muito tempo depois quando retormei ao bairro de veleiros com meu filho, afim de mostrar-lhe um pouco de minha infancia que Jorge meu querido amigo e mestre foi deportado para seu país alguns anos depois que me mudei de la, e que ele era um jornalista da NHK.
Outras máquinas e outras histórias passaram por minha vida, outros mestres também e até hoje não me imagino longe de uma câmera fotográfica , elas se tornaram uma extensão de meu corpo, ferramenta de trabalho, companheiras de meu dia-a-dia, até mesmo na hora de dormir, pois as deixo ao lado de minha cama no criado mudo para que compartilhem de meus sonhos e mantenha viva minhas lembranças.
O reservatório de Guarapiranga é responsável pelo abastecimento de grande parte da capital paulista e foi cenário de encontro de corpos (cadáveres) provavelmente produto de desova de execuções sumarias do “Esquadrão da morte” ativo naqueles dias difíceis de anos turbulentos, ainda hoje chamado de "Os anos de chumbo" ( lugar comum ainda utilizado por personagens do jornalismo brasileiro que vivenciaram o período da ditadura e que não da pra esquecer. ) A fotografia que originou a redação " O domingo" é um registro que mantém viva a minha memória sobre coisas que apenas ouvíamos falar, como boatos sobre a repressão e uso da força policial que nos trazia uma falsa sensação de ordem e segurança. Meu pai e eu ainda íamos experimentar o amargo sabor das imposições arbitrarias e injusta que a repressão nos ofereceria.
Com a foto “DOMINGO” feita em Dois de outubro de 1966, descobri em um episódio macabro, que nasceu em mim o jornalista, o fotojornalismo, a busca pela diferença diante dos fatos. Varri chão de gráfica, entreguei muito jornal, esfreguei muitos linotipos, limpei tinteiro, rolos de tinta, freqüentei estúdios de revelação e de lá pra cá fotografei muitas vezes a Cidade Nua. A foto que foi tema de uma redação que fizemos em classe dias depois de revelada, é parte de um acervo de mais de cinco mil fotografias feitas ao longo dos anos que se sucedeu, parte delas (fotos urbanas) não foram entregues na ocasião de retirá-las do laboratório de revelações, onde meu pai sempre revelava os filmes; quando não os revelava no jornal onde trabalhava a titulo de coleguismo. Imagens do cotidiano paulista no centro de São Paulo, caminhões da FP ( Força Pública) viaturas policiais, muitas peruas Kombi na calçada da Barão de Limeira, durante a madrugada carregadas de jornais, soldados do exercito, homens de paletós e gravata, alguns mendigos e poucos camelôs. Tudo isso era motivo pra apreenssão de material sob censura; um carimbo bem grande com os dizeres CENSURADO..
Artur da Costa e Silva nasceu em Taquari, RS, no dia 3 de outubro de 1899. Foi eleito presidente da República em eleição indireta pelo Congresso, em três de outubro de 1966, sendo empossado em 15 de março de 1967. Faleceu em 17 de dezembro de 1969 e foi substituído por uma junta militar. O Ato institucional nº. 5 vigorou até 31 de dezembro de 1978.
Quarenta anos depois. Nem das cores, nem de nada sou o mestre.
Simplesmente sou um antigo e humilde aprendiz.
Claudio Gonçalves
agenciapress/doc.ISO
Dois de outubro de 2007
"Sem linguagem nova não há realidade nova."
( Frases e pensamentos de Glauber Rocha)
Quanto aquele olhar? Bem, ainda continuo observando atentamente em prol do jornalismo brasileiro. Sou o Documentador, o Relator, o elo entre a noticia e o leitor.
Sou Jornalista.
Sou Claudio Gonçalves
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